O Deus de Marcião


 

    Depois da morte dos discípulos, os cristãos enfrentaram momentos conturbados. Um deles foi a necessidade de definir a relação entre cristianismo e judaísmo. Para Justino Mártir, a história de Jesus não era isolada: o Antigo Testamento convergia para Ele. Assim, sem negar suas raízes, os cristãos organizaram a casa.

    Contudo, Marcião não pensava assim.

    Ele acreditava que esses vínculos com o judaísmo sufocavam o crescimento do cristianismo. Marcião, natural de Sínope, na Ásia Menor, morreu por volta de 160 d. C. Acredita-se que ele se mudou para Roma por volta de 130 d.C., onde se estabeleceu no negócio de transportes. Marcião doou com generosidade para a comunidade cristã de Roma, talvez buscando o favor da igreja. 
    A doutrina central de Marcião era que o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo revelado por Jesus.
    Para ele, o Deus do Antigo Testamento era inferior — até fraco — quando comparado à visão cristã de Deus. Jesus, segundo Marcião, não foi enviado pelo “deus judeu”, nem sequer por ele conhecido — uma divindade marcada pela ira e ciúme, em contraste com o amor revelado por Cristo. Essa ideia se enraizava tanto no dualismo gnóstico quanto na doutrina da impassibilidade divina — temas que merecem estudo à parte.

    Então, Marcião retirou da Bíblia todo o Antigo Testamento, os evangelhos de matriz judaica e as epístolas judaizantes, ficando apenas com partes do evangelho de Lucas e as cartas paulinas — estas, ainda assim, editadas.
    Tertuliano comparou essa tentativa de “purificação” do texto bíblico do seguinte modo: 
    Valentinus alterou as Escrituras pela falsa exposição delas, Marcião pelo remendo textual. Aquele usou sofismas, este, usou uma faca.
    Contudo, como observou Heschel em The Prophets:
    A proclamação de Marcião sobre o Deus de Israel foi teimosamente preservada na mente ocidental até os dias de hoje”. 
    
    Autores modernos tratam o Deus de Israel como se ele fosse Moloque. De acordo com o teólogo Paul Volz, o Deus de Israel é tido como “destruidor, sinistro, perigoso e inexplicavelmente irritado; alguém que se regozija na destruição, arruína inesperadamente; alguém que pune sem misericórdia, alguém que requer crueldade e cria o mal”. 
    Além disso, o Deus de Israel é consistentemente descrito como “severo, arbitrário, inescrutável, irresponsável e até mesmo assustador”. Dessa forma, retratam o Deus de Israel como uma divindade caprichosa e intemperante.
    Será, contudo, que essa imagem de um Deus puramente vingativo e arbitrário se sustenta diante de um exame mais detido das Escrituras? Para responder a essa questão, é preciso investigar as causas da ira divina.
    As causas da ira de Deus podem ser analisadas sob duas perspectivas: em relação àqueles que estão fora da aliança e àqueles que, pertencendo a ela, a violam.

 Assim, para os que não fazem parte da aliança, a ira de Deus é inflamada por causa do orgulho, idolatria, maldade, iniquidade, injustiça e violência excessiva ou desumanidade (Am 1:3,6,9; Is 2:12-17; Jr 48:7,13; Is 47:10; Is 13:11; Ez 28:18).

 Para os que gozam da aliança com Deus, o principal motivo é a quebra da aliança (Jz 2:20,21; 1R 11:9,10; Dt 4:23,24; Ex 20:4,5; Jr 50:11-17; Os 6:6; Is 1:10-17; Mq 3:1,2).

Além disso, a ira de Deus também se inflama quando seu povo é oprimido e os mais fracos são pisados.
    
    De fato, em cada cristão coexiste a ira e o amor divinos: a Sua ira porque somos pecadores,
e o Seu amor, porque o sacrifício de Cristo nos libertou da condenação. Além disso, Deus constantemente pede que seu povo seja justo (Mq 6:8) e misericordioso (Lc 6:36). Talvez seja porque o pecado é muito mais avassalador do que imaginamos e cremos. Se sentimos a dor do pecado diariamente e Deus nos ajuda e mantém, não deveríamos, então, buscar aliviar a dor dos outros?
    
    Portanto, é incorretíssima a afirmação de que a ira de Deus é arbitrária e assassina. “Sua ira é inflamada quando o clamor dos oprimidos chega aos seus ouvidos” (Abraham Heschel).
    Não maltrate o estrangeiro, nem o oprima; porque vocês foram estrangeiros na terra do Egito. Não maltratem as viúvas nem os órfãos. Se de algum modo os maltratarem, e eles clamarem a mim, eu lhes ouvirei o clamor; a
minha ira se acenderá, e eu matarei vocês à espada; as suas mulheres ficarão viúvas, e os seus filhos ficarão órfãos.” (Êxodo 22:21-24)